O estudo metódico da medicina
bíblica só começou no século XVII. A partir de então, acumularam-se as
descobertas sobre essa arte, tal como era conhecida e praticada na época em
Israel, no Egito e na Mesopotâmia. Os termos que designam o médico, a medicina
ou a ideia de curar (rofé) repetem-se oitenta e uma vez no Antigo testamento e oitenta e
três no Novo. Juntamente com
os médicos, os sacerdotes, as parteiras e, às vezes, os profetas também desempenham funções médicas. Os embalsamadores e certas categorias de feiticeiros também são honrados com o título de médico.
A ideia central é que a
doença e a saúde dependem de Deus. Essencialmente, é Ele que envia o mal e é
Ele que cura, seja diretamente, seja por intermédio de um profeta. Uma simples prece
pode restituir a saúde a um doente. Por vezes, é preciso agir. Olhando as
serpentes de bronze erigidas no campo dos hebreus as pessoas se curavam das
mordidas de cobras. Um cajado mergulhado nas águas poluídas tornava-as
salubres; uma imersão curava a lepra e um profeta podia ressuscitar um morto. É
evidente que os intentos de explicação racionalista desses “milagres”, assim como os do Novo Testamento, contradizem o
que pensam e creem os homens da Bíblia.
No entanto, eles têm
conhecimentos médicos indiscutíveis, que lhes permitem curar, sem a ajuda do
milagre. Tinham conhecimentos de anatomia. O homem era por eles conhecido
enquanto estrutura viva: os nomes e as funções das partes do corpo, inclusive o
embrião, o útero, o fígado, os ossos e os músculos do homem são detalhados com
uma precisão técnica tão grande, que as línguas modernas não possuem todos os
equivalentes para essa diversificadíssima terminologia. Noções de fisiologia
transparecem nas expressões que identificam o sangue ou a respiração com a
própria vida. O papel psicossomático do coração, do fígado, dos rins é
sublinhado na linguagem cotidiana. O movimento do sangue era conhecido dos
antigos, embora tenha sido necessário esperar o ano 1628 de nossa era para
descobrir as leis de sua circulação.
Joel não sabe não
distinguir a pureza ritual da limpeza ou da higiene, pois vive globalmente em
Deus. Contudo, as leis da essência religiosa que ele respeita obrigam-no a não
comer carnes estragadas, a detectar em suas fezes os menores sinais de doença, a
banir todo alimento impuro,
inclusive o sangue. Ele nunca comia carne de animais cujo não consumo favorecesse
uma melhor higiene. O corpo do homem devia ser religioso e regularmente lavado
em várias circunstâncias da vida cotidiana. Os regulamentos do exército
insistiam nas regras da limpeza do soldado e de seu campo. A higiene
sexual também ocupava um
lugar importante na vida do sal, obrigado a lavar-se depois de cada relação e abster-se do coito
durante a menstruação da mulher.
Em matéria de medicina
interna, a Bíblia cita oitenta e cinco vezes o coração enquanto sede da vida,
da sensibilidade e do pensamento do homem. O Livro de Samuel descreve com uma precisão clínica o infarto que paralisa Nabal antes de sua morte, dez dias
depois, de um segundo ataque. A Bíblia sabe diagnosticar os distúrbios
circulatórios de que sofre o
velho rei David ou a arteriosclerose do rei Asa. A doença renal do rei Jordão também é descrita com exatidão.
Joel vê o grande
espaço que a cirurgia e a ortopedia ocupam na vida do povo, do qual cada filho
homem, aos oito dias de idade, sofre a delicada operação da circuncisão. Não é Deus o grande cirurgião que tirou uma costela do corpo do homem para criar com ela uma obra-prima, a mulher? Os cirurgiões de Israel têm objetivos mais modestos:
eles reparam uma fratura do braço ou da perna com tanta destreza quanto o faz
um ortopedista de nossos dias.
Essa arte era conhecida deste o terceiro milênio –
prova-o uma múmia. Os egípcios praticam esse tipo de operação que as guerras
tão banais quanto necessário. A trepanação era praticada, como atestam alguns
crânios, notadamente de um homem que vivia há quase três mil anos, encontrado
em Laquis.
Os hebreus já
conheciam empiricamente doenças cujas causas só foram determinadas no século
XX, como a acromegalia
(saruá),
desenvolvimento excessivos das extremidades, estudados em 1907 por J. Erdheim,
ou os distúrbios endócrinos que provocam a intumescência dos testículos (meruah
ashahh). Os textos bíblicos
abundam em anotações sobre a menstruação, os corrimentos e as doenças da
mulher. O feto é chamado, com graça e exatidão, de fruto do
ventre.
As escrituras
Sagradas mencionam os cinco sentidos e anotamos os distúrbios de seu
funcionamento. As doenças dos nervos, as depressões e a loucura são mencionadas
como frequência, mas em termos tão genéricos, que é impossível diagnosticar a
que podiam corresponder exatamente. Em compensação, as doenças da pele e do
sexo são descritas com profusão de detalhes técnicos. Note-se que o enuco e o
castrado não podem “entrar na assembleia de Iahweh”, o que impede seu
casamento.
As epidemias são tão
temidas quanto às guerras ou a fome. Trata-se, geralmente, de epidemias de
peste que se propagam por contágio. Os antigos sabiam que o isolamento do
doente ou o abandono da cidade saqueada constituíam a defesa mais eficaz contra
o mal. A Bíblia menciona igualmente os envenenamentos e os distúrbios
provocados pelas mordidas de animais venenosos, sem com isso desvendar suas
causas toxicológicas.
No que concerne à
velhice, ela é descrita em termos que nenhum gerontólogo (geriatra) atual repudiaria, na passagem poética que traz uma
espécie de conclusão aos pensamentos do Eclesiastes.
Assim, os hebreus concebem
a alma e o corpo cimo uma unidade viva: o homem possui a vida num grau tão mais
intenso quanto mais tiver a bênção de Iahweh. A doença leva o homem para a
morte; a cura é um fenômeno espiritual que restaura a integridade do ser e sua
livre comunicação com as forças da vida que estão em Iahweh. Portanto, as
doenças mais graves são curadas pelos sacerdotes e homens de Deus nos
santuários, ou seja, em cada profissão.
A lepra, ou a espécie
de doença de pele que a palavra saraá designa, é objeto de longas análises no Levítico.
O sacerdote é encarregado de diagnosticar a doença e
constatar sua agravação ou desaparecimento. Sacrifícios e abluções concorrem
para a purificação do doente ou mesmo da casa atingida. Pois a doença é
provocada por um “demônio” que se apoderou do doente enfraquecido pelo pecado – é preciso expulsá-lo do corpo atingido, de seus
Pêlos, que serão raspados, e dos objetos que possam ter sido atingidos, que são
lavados ou queimados. Os pássaros puros, a madeira de cedro, o carmesim de
cochonilha, a manjerona e a água corrente são alguns remédios recomendados. O
sacerdote administra-os de acordo com um ritual rigoroso. Assim, a legislação
sacerdotal codifica as doenças que tornam o homem impuro e estabelece os
remédios destinados a purificá-lo ou curá-lo. Juntamente com as doenças da
pele, as doenças sexuais são as mais citadas na Bíblia. A lei impõe, assim,
regras rigorosíssimas de higiene corporal, alimentar, sexual e preocupa-se com
a salvaguarda da saúde pública. Essas medidas se impõem com força ainda maior
por estarem ligadas à exigências da pureza e da santidade religiosa. O primeiro
médico é o próprio Deus. Os médicos receitam tratamentos à base de plantas
medicinais, mas quem cura de verdade é apenas Deus, ou sacerdote e o profeta,
graças a seus poderes carismáticos.
Extraído do Livro Os Homens da Bíblia, p.
160 a 164 – Autor André Chouraqui
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